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sexta-feira, 29 de março de 2013

Grandes romances e a mulher na literatura de cordel, 1º capítulo


Os grandes romances na literatura de cordel, pelo olhar dos valores veiculados, em especial à condição dos direitos da mulher

Já publicado no sitio CORDEL DE SAIA, ensaio mais genérico intitulado A produção feminina na literatura de cordel – um novo olhar. Agora, retomo os grandes romances, mas focada nos valores tradicionais veiculados, em especial àqueles que dizem respeito à condição da mulher, na trajetória da literatura oral. É peculiar observarmos que até os nossos dias ainda não se tenha legislação definida de proteção aos direitos da mulher. Li, recentemente, PARECER do Comité Económico e Social Europeu sobre aErradicação da violência doméstica contra as mulheres (parecer de iniciativa) Relator: Mário Soares, apresentado em Bruxelas, 18 de setembro de 2012. Fiquei perplexa com os dados ali apresentados, especialmente por se referir a União Européia, Imagine, agora, a quantas andamos no Brasil?  Vamos, então, aos nossos romances.

Em linhas gerais os grandes romances poéticos seguem padrões similares aos romances em prosa, acompanhe alguns aspectos, como: critérios rigorosos de forma, conteúdo e apresentação.


            Forma
-        estabelecer nas primeiras estrofes, sempre em sextilhas, como sempre nos alertou Rodolfo Coelho Cavalcante e tantos outros poetas, o enunciado do tema que vão narrar;
-        explicitar o caminho de suas narrativas;
-        criar a expectativa para o “grande final” – se vitoriosos ou trágicos;
-        chamar a atenção do leitor para o processo narrativo (modalidade poética; metrificação; e formatação física): sextilhas, 7 sílabas, 32 páginas, tamanho 12 x 15cm; e,
-        cuidar bem da elaboração da capa; da seleção do título (o mais sugestivo que a imaginação do poeta lhe permitir), também são atributo essenciais ao sucesso do romance.

            Performance
-         o narrador-poeta é peça fundamental para obter a atenção do ouvinte-leitor – sua entonação, suas pausas propícias, estabelecem um clima de tensão, mantendo o ouvinte-leitor atento e curioso para o desfecho da narrativa. Os primeiros romances poéticos vindos de tradições orais, e como tal, eram  cantados e/ou declamados em praças, feiras e festas públicas. Destacando aí o importante papel do cantador, que de feira em feira, cidade em cidade, eram os responsáveis pela vendagem dos “romances”. Sobre a figura da cantador escrevi o poema O poeta e o folheteiro, 2012, publicado pela Cordelaria Manoel Monteiro, Campina Grande, Paraíba.

-        Venda: à época das grandes produções tipográficas, a conquista da venda, diferente dos romances em prosa, dependia da performance do cantador e/ou declamador. O desembaraço, a perspicácia e astúcia, eram fatores determinantes para garantir a boa vendagem.

Os romances são norteados por ingredientes comuns, tanto em prosa como em versos:

            Temas
-        amor, encantamento e aventura, são os mais recorrentes e continuam a chamar a tenção do leitor, mesmo no dias atuais;
-        a figura da mulher é presença marcante em todos os romances e, vale a pena acompanhar sua trajetória. Escrevi o poema A mulher e sua trilha, ainda inédito.

Nos primeiros grandes romances a figura da mulher sempre esteve presente e apresentada sob vários pontos de vista:

-        a esposa-mãe, zelosa de seu marido e casamento e da guarda e educação dos filhos, esta foi a principal característica atribuída à mulher naqueles tempos, nos romances medievais, lá na Europa;
-        a mulher sob a ótica do divino: a virtude das santas, e das musas, a filha obediente e casta, acima qualquer suspeita de conduta (a pura e casta), a quem dirigem seus apelos pela capacidade de inspiração poética:

Manoel Camilo dos Santos, um de nossos grandes romancista inicia o romance com todos os apelos comuns aos grandes narradores. Veja em A rainha da floresta e a fera humana, (1958), todos estes ingredientes, fundamentais. Veja abaixo:

”Eu combinei com Apolo
Com Minerva e com Diana
Para escrever essa história
Que até o título é bacana
A rainha da floresta
Inclusive a fera humana.


Segue deixando claros os papéis da mulher (esposa / filha / meretriz). Chama a atenção para as consequências do rompimento dos valores estabelecidos, seja por vontade própria seja por infortúnio (assalto, roubo, “sedução” ou outra agressão qualquer).

“(...)
donzela que não desse
valor a honestidade
estragasse o seu papel
de pudor e castidade
tinha que ser castigada
com grande severidade

E quando uma dessa estava
esperando a descansar
assim, que focava boa
o rei mandava botar
o seu filhinho nas matas
p’ra qualquer fera devorar.

Dizia o rei: - eu não quero
geração de meretriz
sabemos que a má árvore
só dar o fruto infeliz
e o filho de bom casal
deixa a nação feliz.”

Estabelece aí a dicotomia do BEM e do MAL, de acordo com os valores morais e sociais vigentes.

Nas primeiras estrofes abaixo o poeta descreve reino em que há somente um herdeiro. Entretanto, acontece o imponderável para um reinado feliz: a morte súbita do rei, que deixa seu filho, Valdomiro, na orfandade:

“(...)
Quando o príncipe Valdomiro
Já contava nove anos
o sopro da desventura
veio perturbar seus planos
a desdita deu-lhe um beijo
com seus lábios desumanos

Veio a morte de surpresa
roubou-lhe a felicidade
matou seu querido pai
ainda na mocidade
envolvendo Valdomiro
no manto da orfandade”

À quinta página do folheto, como nos bons romances, o poeta faz uma pausa e...anuncia mudar de assunto, mudar o rumo da prosa. Este anúncio é mais um gancho a ser conectado mais à frente...Veja:

sábio rei
tinha sido condenada

A tal moça de quem falo
chamava-se Teodora
tinha dezenove anos
linda como a deusa Flora
porém, o seu sofrimento
se eu contar o leitor chora.

Foi vítima de sedução
de um malandro infiel
o qual retirou-se quando
manchou da jovem o papel
obrigando a miserável
beber a taça de fel.

Ela ocultou-se do povo
para não à ver talvez
mas coitada quando estava
nos atos da gravidez
o vassalo prendeu ela
com tamanha estupidez.

E disse para o carrasco:
quando ela descansar
não terá nem o direito
de ao filho amamentar
leve a criança p’ra mata
e lá é p’ra degolar.”

O leitor pode observar a dureza do tratamento impingido às mulheres que por vontade ou ingenuidade rompiam com os valores tradicionais.

A partir desse momento o poeta narra a morte da mãe, não socorrida e a entrega da criança sobrevivente ao carrasco, que, por pena, diante de sua beleza, não executa sua tarefa, ao contrário, a abandona no deserto... Neste deserto morava uma velha feiticeira, que viu um homem abandonar um embrulho e sair correndo...  A feiticeira desconfiou e... aproximando-se do local, encontra a criança! Toma para sim os cuidados e a batiza de Flor dos Campos e, informa:
“(...)
Assim foi ela crescendo
com seu gesto de princesa
só tendo sido a propósito
da Divina Natureza
que até Venus invejava
a sua grande beleza.”

Neste ponto nosso narrador retoma a história do reinado do principezinho Valdomiro. O rei, seu pai antes de morrer, encarregou um sábio amigo para conduzir o reinado até a maioridade do príncipe. Como em todo romance, o sábio torna-se um déspota, odiado por todos, que almejam vê-lo destronado.
“(...)
O leitor sabe que o rei
já próximo de ser finado
deixou um sábio na corte
como único encarregado
até quando o princepezinho
pudesse ser coroado

Com tantas idas e vindas, em meio aos assuntos que tocam a continuidade do romance. Na página 10 informa:
“(...)
Leitor aqui faço ponto
neste assunto e me retiro
porque me vejo obrigada
navegar em outro giro
irei falar um momento
sobre o príncipe Valdomiro”

A tal bruxa (figura esteriotipada da mulher fora dos padrões morais vigentes) também odiava o rei por ter mandado jogar nas matas a criança. Então, entendendo ser Valdomiro o mentor do feito, mandou sequestrá-lo e o transformou num monstro. Então nosso narrador insere mais ingredientes de magia e encantamento a sua narrativa.

O que permeia a narrativa?

-        valores do poder patriarcal, moral e repressivo;

-        a já citada esposa-mãe – voltada para a castidade do o lar, o marido e os afazeres domésticos            “Oh! Mulher, esposa e mãe”;

-        a mulher vinculada ao “mal”: a esposa adúltera, a filha desobediente e o conseqüente castigo: a expulsão do núcleo familiar e social para uma vida apontado como a “sina”, a “sorte” das serpentes do mal, em que só lhe cabia a prostituição, qualificada como, meretriz, ingrata e suja;

-        a mulher submetida às mais duras arbitrariedades e invasão de seu direito mais básico: a condição humana;

-        ela própria colocando-se na posição de infratora, transgressora, quando, na verdade lhe são tirados os direitos à educação, ao conhecimento, à informação, que lhes daria outra posição diante das “seduções”, de que são vítimas por ignorância. Este quadro de violência leva a mulher a reproduzi-lo, delegando à sorte, à sina, todo o repertório de violência a que é submetida. Observe:

“Foi vítima de sedução

E segue em sua culpabilidade:

“Ela ocultou-se do povo
para não à ver talvez”

Mais adiante o castigo emocional é ainda mais severo e drástico. Dela retira o direito ao afeto primordial – a amamentação

“E disse para o carrasco:
quando ela descansar
não terá nem o direito
de ao filho amamentar”

-        ainda a mulher marcada pela dicotomia do BEM X MAL – a ingenuidade seduzida, e a feiticeira, marcada por valores negativos, mas única capaz de rever o código moral vigente, pela sagacidade e magia;
-        a mulher como objeto de desejo e inspiração

“que até Venus invejava
a sua grande beleza


Somente a partir da década de 90 com a plena expansão da mulher como contribuinte social, seu papel torna-se mais ameno. Já neste momento com advento das grandes mídias da comunicação social, o espaço para a participação da mulher com personalidade “de ombro a ombro” com o homem, estes estigmas ficam de lado, mas... Nessa altura os grandes romances já deixam de ser produzido.

A proliferação das mídias tirou dos poetas o público leitor e ouvinte de romances, não valia mais a pena editá-los, os custos não compensavam. Ficamos assim com as composições de 8 e 18 páginas, voltando-se para os fatos cotidiano, as narrativas de contos e causos, que levam ao leitor a possibilidade de leitura rápida e também interessante face ao valor de cada poeta, homens  e mulheres.

E de tanto ler e trabalhar com a literatura de cordel fui agraciada com o Prêmio Mais Cultura, Edição Patativa do Assaré, 2010, com o folheto Catalogação de cordel, 2011

A combinação com os deuses lhe garante o sucesso. Clic ou copie o link para ler o folheto na íntegra.


Bibliografia:

C0805
Santos, Manoel Camilo dos. A rainha da floresta. Editor Proprietário: Manoel Camilo dos Santos. Campina Grande: A Estrella da Poesia, 1958. 32 p

C0554
Barros, Leandro Gomes de. Os martírios de Genoveva. Editores proprietários: Filhos de José Bernardo da Silva. Juazeiro do Norte: São Francisco, 1974. 48 p.

C6519
Pinto, Maria Rosário. Catalogação de cordel. Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de Literatura de Cordel, 2011. 16 p. 29 estrofes : sextilhas : 7 sílabas

C6849
Pinto, Maria Rosário. O poeta e o folheteiro: da edição à venda. Campina Grande, PB: Cordelaria Poeta Manoel Monteiro, 2012. 12 p. 26 estrofes : setilhas : 7 silabas

C6487
Catunda, Maria de Lourdes Aragão. Não deixe o homem bater, nem em seu atrevimento!. Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de Literatura de Cordel, 2011. 8 p. 13 estrofes : setilhas : 7 sílabas
http://www.docvirt.no-ip.com/asp/folclore.asp?bib=cordel&pasta=C6487

AGUARDE QUE PUBLICAREMOS NOVAS CURIOSIDADES SOBRE A EVOLUÇÃO DA LITERATURA ORAL PARA TEXTOS IMPRESSOS EM GRÁFICAS E/OU TIPOGRAFIA
Maria Rosário Pinto
Rio de Janeiro, março 2012.

Um comentário:

  1. Se a mulher faz Cordel
    Também faz o Cordelista
    Lhe basta um Homem fiel
    Para lhe fazer conquista
    Pois o Deus do bacharel
    Também é Deus desta artista!

    Severino Honorato - Rio de Janeiro.

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