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quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Cordel no site de Cultura do RJ



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Muito além do sertão
A ocupação do Morro do Alemão, capoeira, Super Mario e até o Direito: autores usam a literatura de cordel para falar de temas urbanos

Na sua época de menino, era mergulhando nos versos de folhetos de cordel que o cearense Marcos Maírton da Silva passava seu tempo livre. “Apesar de não terem as figuras das revistas em quadrinhos, a forma rimada e metrificada dava à leitura um ritmo bem gostoso”, lembra o atual juiz federal. Mais velho, buscou as memórias do fascínio que aquela literatura lhe provocava para escrever seu primeiro cordel. Na história, Marcos provocou o encontro de duas das mais tradicionais figuras dessa literatura – o Padre Cícero e o diabo – com um personagem tipicamente urbano: um advogado.

A experiência de colocar no foco da narrativa de seu cordel uma figura aparentemente tão deslocada desse universo foi a inspiração para o autor escrever Uma Visita Inesperada, em que ele, tendo passado toda sua vida na cidade, se pergunta como conseguiria escrever um cordel verdadeiro. Tendo crescido lendo relatos de grandes poetas sobre “as coisas lá do sertão”, Marcos coloca a questão: “como é que eu vou fazer/ poesia de cordel/ sem sequer eu conhecer/ uma casa de farinha/ o ninho d’uma rolinha/ uma jumenta amojada/ uma cabaça, uma tramela/ água de pote, gamela/ uma galinha deitada?”.

Pois essa mesma pergunta veio, nos últimos tempos, sendo feita por uma série de outros autores. E a maioria chega à mesma conclusão: a literatura de cordel tem uma riqueza que pode ser adaptada aos mais variados assuntos. O que define o cordel, explica Gonçalo Ferreira da Silva, presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), não é o tema, mas a atenção criteriosa à métrica e à rima, sempre em função de estabelecer um ritmo que lembra as cantorias orais, berço dessa linguagem. “Se não tiver um desses fundamentos, pode ser um texto muito bonito, mas não será cordel”, diz. 

“Hoje, além dos temas tradicionais, falamos também de romances, contos, lendas, folclore, ciências, política, enfim, o cordel pode abranger todas as áreas de conhecimento”, continua o poeta. E, em seus séculos de história, o cordel nunca se manteve estático: basta pensar que, nos seus primórdios, quando se popularizou em Portugal e Espanha no século XVI, era usado como forma de galanteio. “Os poetas saíam pelas ruas estreitas de Barcelona, de Madri, de Lisboa, acompanhados de um rapaz com um violão. E, quando chegavam na janela da garota mais bonita, declamavam as estrofes do cordel para ela”, conta o presidente.

“Na verdade, o cordel no Brasil sempre abordou temas variados, sendo possível destacar três grandes grupos: as histórias do cangaço; os contos de inspiração medieval, com reis, rainhas e fadas; e os contos de mistério, incluindo lendas, assombrações e um personagem frequente: o diabo. Mas, talvez por ser uma manifestação cultural que cresceu muito no Nordeste, no começo do século XX, essa temática do cangaço e do sertão ganhou mais projeção, até porque foi também no mesmo período e na mesma região que o cangaço fez sua história”, conta Marcos Maírton, que hoje divulga o trabalho de outros “cordelistas urbanos” no blog Mundo Cordel, e tem uma série de livros publicados. Um deles, A História de Zé Luando – O Homem Que Virou Mulher, conta a saga de um menino diferente, que deixa o sertão do Ceará “em busca da liberdade/ de viver como mulher / sem ninguém pôr a colher/ na sua sexualidade”.

Para a poetisa Maria Rosário Pinto, usar o cordel para falar de um tema como homossexualidade não tem nada de surpreendente. “Porque o poeta de cordel é essencialmente um observador. Nada lhe passa despercebido”, diz a maranhense, que conheceu cordel por intermédio do pai, um leitor voraz de literaturas populares. Rosário mantém o blog Cordel de Saia, em parceria com Dalinha Catunda, nascida no interior do Ceará. As nordestinas, que atualmente moram no Rio, compartilham no site suas impressões sobre seu dia-a-dia – coisa que, conta Dalinha, na verdade não tem nada de novo. “Durante muito tempo, o cordel foi o jornal do interior do Nordeste, transmitindo as mais importantes notícias do país. Abordar através da literatura de cordel os temas urbanos e contemporâneos é antes de tudo registrar os acontecimentos e repassar o fato de forma mais leve”, conta.

E é delicadeza que Dalinha transferiu ao episódio da tomada do Complexo do Alemão pelas Forças Armadas, em 2010. O tenso marco da história carioca recente foi a inspiração para esperançosas e delicadas rimas no cordel A Invasão no Alemão. “Fiquei ligada na televisão acompanhando a invasão, completamente envolvida com as notícias da ocupação. Ali mesmo foram brotando os versos, e quando me dei conta já tinha feito minha cobertura em cordel”, lembra. Já Rosário, em um de seus trabalhos, brinca com o “sabe-tudo” Google, figura onipresente da vida moderna. Em Sr. Google, a autora propõe ao buscador um duelo de poemas, ao que ele só responde depois de vasculhar a web: “buscando na Wikipédia/conheceu outros poetas/nesta grande enciclopédia/ aprendeu a fazer rima”.

Foi também no mundo virtual que o alagoano Cárlisson Galdino buscou a inspiração para seu primeiro cordel. Um ávido defensor do compartilhamento de conhecimento sem restrições, o artista escolheu usar essa linguagem tradicional, que conheceu ainda menino, para divulgar suas ideias no Cordel do Software Livre. “Acredito que o artista tenha um importante papel social e que não deve se limitar a fazer entretenimento. Seu entretenimento tem que trazer um algo mais que possa, ao menos um pouco, transformar a sociedade. Isso foi o que me motivou a escrever meu primeiro cordel, Cordel do Software Livre, e outros como o Cordel Quilombola e Piratas e Reis”. Seus manifestos em forma de cordel, que podem ser encontrados replicados em vários sites na internet, acabaram servindo a um duplo propósito, avalia o autor. “Além de divulgar o conteúdo (sobre o movimento social do Software Livre), os livretos terminaram também levando o cordel a quem pouco (ou, em alguns casos, nada) conhecia dessa riqueza cultural nordestina”.

Hoje, Cárlisson divulga sua produção em seu blog, onde pode-se encontrar também o divertido A Saga de Um Encanador, cujo protagonista é um ícone do mundo dos jogos eletrônicos. “Como Mario muito provavelmente ainda é o personagem mais forte da história dos videogames, ainda liderando a lista de franquias mais vendidas (e de jogo melhor avaliado pela crítica, o caso do Mario Galaxy), concluí que merecia uma homenagem em forma de cordel. A Saga de um Encanador relata a aventura do Mario em seu primeiro jogo, Mario Bros, com estrofes relatando o progresso do personagem através das fases”, conta o autor.

Se os cordelistas urbanos citados até agora tiveram a chance de estar em contato com o cordel desde pequenos, esse não foi o caso de Victor Alvim, conhecido como Lobisomem. “Meu interesse pela literatura de cordel surgiu quando comecei a pesquisar sobre capoeira”, diz o carioca, que esbarrou nessa linguagem nos acervos sobretudo do Museu do Folclore. Em seus primeiros trabalhos, Victor misturava suas experiências com a capoeira aos personagens tradicionais da literatura de cordel, como Lampião, Luiz Gonzaga, Padre Cícero e tantos outros. 

“Com o tempo, foi inevitável que a cultura e personagens cariocas também me inspirassem e me influenciassem, já que sou nascido e criado no Rio de Janeiro. Então comecei a escrever também homenageando Jorge Benjor, Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Arlindo Cruz, o bloco Cacique de Ramos, Tim Maia...”, conta o poeta. Um de seus cordéis, por exemplo, narra por versos o encontro de Zeca Pagodinho e São Cosme e Damião, enquanto outro, recém-lançado, imagina como foi a recepção do síndico Tim Maia no céu.

A maioria dos poetas entrevistados acha que, mesmo se visto com desconfiança no início, esses cordéis urbanos são hoje plenamente aceitos, e que sempre haverá espaço tanto para o tradicional quanto para o moderno. Dalinha Catunda, que enxerga o gênero como um “leque que comporta uma variedade de temas”, resume por quê. “O cordel está no rádio, na televisão, na internet. Este cordel de hoje, globalizado, não pode nem deve descartar nenhum assunto”. Sorte dos leitores. 
Colaboração de Marianna Salles Falcão
Fonte: http://www.cultura.rj.gov.br/materias/muito-alem-do-sertao

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