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Muito além do sertão
A ocupação do
Morro do Alemão, capoeira, Super Mario e até o Direito: autores usam a
literatura de cordel para falar de temas urbanos
Na
sua época de menino, era mergulhando nos versos de folhetos de cordel
que o cearense Marcos Maírton da Silva passava seu tempo livre. “Apesar
de não terem as figuras das revistas em quadrinhos, a forma rimada e
metrificada dava à leitura um ritmo bem gostoso”, lembra o atual juiz
federal. Mais velho, buscou as memórias do fascínio que aquela
literatura lhe provocava para escrever seu primeiro cordel. Na história,
Marcos provocou o encontro de duas das mais tradicionais figuras dessa
literatura – o Padre Cícero e o diabo – com um personagem tipicamente
urbano: um advogado.
A
experiência de colocar no foco da narrativa de seu cordel uma figura
aparentemente tão deslocada desse universo foi a inspiração para o autor
escrever Uma Visita Inesperada, em que ele, tendo passado toda sua vida
na cidade, se pergunta como conseguiria escrever um cordel verdadeiro.
Tendo crescido lendo relatos de grandes poetas sobre “as coisas lá do
sertão”, Marcos coloca a questão: “como é que eu vou fazer/ poesia de
cordel/ sem sequer eu conhecer/ uma casa de farinha/ o ninho d’uma
rolinha/ uma jumenta amojada/ uma cabaça, uma tramela/ água de pote,
gamela/ uma galinha deitada?”.
Pois
essa mesma pergunta veio, nos últimos tempos, sendo feita por uma série
de outros autores. E a maioria chega à mesma conclusão: a literatura de
cordel tem uma riqueza que pode ser adaptada aos mais variados
assuntos. O que define o cordel, explica Gonçalo Ferreira da Silva,
presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), não é o
tema, mas a atenção criteriosa à métrica e à rima, sempre em função de
estabelecer um ritmo que lembra as cantorias orais, berço dessa
linguagem. “Se não tiver um desses fundamentos, pode ser um texto muito
bonito, mas não será cordel”, diz.
“Hoje,
além dos temas tradicionais, falamos também de romances, contos,
lendas, folclore, ciências, política, enfim, o cordel pode abranger
todas as áreas de conhecimento”, continua o poeta. E, em seus séculos de
história, o cordel nunca se manteve estático: basta pensar que, nos
seus primórdios, quando se popularizou em Portugal e Espanha no século
XVI, era usado como forma de galanteio. “Os poetas saíam pelas ruas
estreitas de Barcelona, de Madri, de Lisboa, acompanhados de um rapaz
com um violão. E, quando chegavam na janela da garota mais bonita,
declamavam as estrofes do cordel para ela”, conta o presidente.
“Na
verdade, o cordel no Brasil sempre abordou temas variados, sendo
possível destacar três grandes grupos: as histórias do cangaço; os
contos de inspiração medieval, com reis, rainhas e fadas; e os contos de
mistério, incluindo lendas, assombrações e um personagem frequente: o
diabo. Mas, talvez por ser uma manifestação cultural que cresceu muito
no Nordeste, no começo do século XX, essa temática do cangaço e do
sertão ganhou mais projeção, até porque foi também no mesmo período e na
mesma região que o cangaço fez sua história”, conta Marcos Maírton, que
hoje divulga o trabalho de outros “cordelistas urbanos” no blog Mundo
Cordel, e tem uma série de livros publicados. Um deles, A História de Zé
Luando – O Homem Que Virou Mulher, conta a saga de um menino diferente,
que deixa o sertão do Ceará “em busca da liberdade/ de viver como
mulher / sem ninguém pôr a colher/ na sua sexualidade”.
Para
a poetisa Maria Rosário Pinto, usar o cordel para falar de um tema como
homossexualidade não tem nada de surpreendente. “Porque o poeta de
cordel é essencialmente um observador. Nada lhe passa despercebido”, diz
a maranhense, que conheceu cordel por intermédio do pai, um leitor
voraz de literaturas populares. Rosário mantém o blog Cordel de Saia, em
parceria com Dalinha Catunda, nascida no interior do Ceará. As
nordestinas, que atualmente moram no Rio, compartilham no site suas
impressões sobre seu dia-a-dia – coisa que, conta Dalinha, na verdade
não tem nada de novo. “Durante muito tempo, o cordel foi o jornal do
interior do Nordeste, transmitindo as mais importantes notícias do país.
Abordar através da literatura de cordel os temas urbanos e
contemporâneos é antes de tudo registrar os acontecimentos e repassar o
fato de forma mais leve”, conta.
E
é delicadeza que Dalinha transferiu ao episódio da tomada do Complexo
do Alemão pelas Forças Armadas, em 2010. O tenso marco da história
carioca recente foi a inspiração para esperançosas e delicadas rimas no
cordel A Invasão no Alemão. “Fiquei ligada na televisão acompanhando a
invasão, completamente envolvida com as notícias da ocupação. Ali mesmo
foram brotando os versos, e quando me dei conta já tinha feito minha
cobertura em cordel”, lembra. Já Rosário, em um de seus trabalhos,
brinca com o “sabe-tudo” Google, figura onipresente da vida moderna. Em
Sr. Google, a autora propõe ao buscador um duelo de poemas, ao que ele
só responde depois de vasculhar a web: “buscando na Wikipédia/conheceu
outros poetas/nesta grande enciclopédia/ aprendeu a fazer rima”.
Foi
também no mundo virtual que o alagoano Cárlisson Galdino buscou a
inspiração para seu primeiro cordel. Um ávido defensor do
compartilhamento de conhecimento sem restrições, o artista escolheu usar
essa linguagem tradicional, que conheceu ainda menino, para divulgar
suas ideias no Cordel do Software Livre. “Acredito que o artista tenha
um importante papel social e que não deve se limitar a fazer
entretenimento. Seu entretenimento tem que trazer um algo mais que
possa, ao menos um pouco, transformar a sociedade. Isso foi o que me
motivou a escrever meu primeiro cordel, Cordel do Software Livre, e
outros como o Cordel Quilombola e Piratas e Reis”. Seus manifestos em
forma de cordel, que podem ser encontrados replicados em vários sites na
internet, acabaram servindo a um duplo propósito, avalia o autor. “Além
de divulgar o conteúdo (sobre o movimento social do Software Livre), os
livretos terminaram também levando o cordel a quem pouco (ou, em alguns
casos, nada) conhecia dessa riqueza cultural nordestina”.
Hoje,
Cárlisson divulga sua produção em seu blog, onde pode-se encontrar
também o divertido A Saga de Um Encanador, cujo protagonista é um ícone
do mundo dos jogos eletrônicos. “Como Mario muito provavelmente ainda é o
personagem mais forte da história dos videogames, ainda liderando a
lista de franquias mais vendidas (e de jogo melhor avaliado pela
crítica, o caso do Mario Galaxy), concluí que merecia uma homenagem em
forma de cordel. A Saga de um Encanador relata a aventura do Mario em
seu primeiro jogo, Mario Bros, com estrofes relatando o progresso do
personagem através das fases”, conta o autor.
Se
os cordelistas urbanos citados até agora tiveram a chance de estar em
contato com o cordel desde pequenos, esse não foi o caso de Victor
Alvim, conhecido como Lobisomem. “Meu interesse pela literatura de
cordel surgiu quando comecei a pesquisar sobre capoeira”, diz o carioca,
que esbarrou nessa linguagem nos acervos sobretudo do Museu do
Folclore. Em seus primeiros trabalhos, Victor misturava suas
experiências com a capoeira aos personagens tradicionais da literatura
de cordel, como Lampião, Luiz Gonzaga, Padre Cícero e tantos outros.
“Com
o tempo, foi inevitável que a cultura e personagens cariocas também me
inspirassem e me influenciassem, já que sou nascido e criado no Rio de
Janeiro. Então comecei a escrever também homenageando Jorge Benjor, Zeca
Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Arlindo Cruz, o bloco Cacique de
Ramos, Tim Maia...”, conta o poeta. Um de seus cordéis, por exemplo,
narra por versos o encontro de Zeca Pagodinho e São Cosme e Damião,
enquanto outro, recém-lançado, imagina como foi a recepção do síndico
Tim Maia no céu.
A
maioria dos poetas entrevistados acha que, mesmo se visto com
desconfiança no início, esses cordéis urbanos são hoje plenamente
aceitos, e que sempre haverá espaço tanto para o tradicional quanto para
o moderno. Dalinha Catunda, que enxerga o gênero como um “leque que
comporta uma variedade de temas”, resume por quê. “O cordel está no
rádio, na televisão, na internet. Este cordel de hoje, globalizado, não
pode nem deve descartar nenhum assunto”. Sorte dos leitores.
Fonte: http://www.cultura.rj.gov.br/materias/muito-alem-do-sertao
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