Por uma questão política e de revisão de termos, abandonei as designações "cultura popular" e "poetas populares" referentes, no primeiro caso, ao arcabouço colorido produzido pelo povo, presente nas suas manifestações artísticas, e, no segundo caso, à poesia escrevívida de poetas que não passaram pela iniciação acadêmica. O que levou-me a esse solilóquio foi a constatação bem observada de que esses setores, os "populares", são os menos agraciados nas ações públicas para a cultura e os menos apreciados pelos dublês de gestores culturais. Observei, e todos podem observar, que um "poeta popular" jamais ganhará um prêmio literário promovido pelo estado oficial tendo as elites culturais como senhoras dos critérios avaliativos. Observei também que os "poetas populares" são usados como adorno em suas festas e ao final são convidados a comer na cozinha e dormir no quartinho. Vi também que esses mesmos poetas quando chamados para se apresentar em escolas, festas públicas e solenidades percebem os menores cachês, quando não são chamados a apenas "divulgar o seu trabalho". O poeta popular e seus pares da cultura popular, a despeito do seu trabalho e labuta, são considerados tão somente como apêndices, desprovidos do rigor técnico e estético requerido pelos editais elitistas. Assim, aqueles dublês aos quais me referi acima, entregam um milhão aos seus pares e apenas um quinhão de migalha ao poeta e ao artista populares. Trago isso para o cordel porque os poetas dessa falange são considerados poetas populares. O povo os ama, é verdade, mas as elites os repugnam. O cheiro do povo, o suor do poeta do povo, do poeta de cordel, constrange a madame e o salão do palácio e o alpendre da casa-grande. Ouvi de um poeta do povo sua vontade: elevar o cordel ao erudito. É um absurdo estético. Não existe elevação nem depressão na poesia. A poesia existe ou não. E acima de tudo não necessita de adjetivos. A poesia é a poesia. Toda e qualquer adjetivação, assim como o próprio termo "popular", é criação das elites para promover a apartação. Independente disso, vamos olhar quatro títulos de cordel escritos por mulheres, continuando as reflexões de matérias anteriores:
Fatima Filon é paulista, de São João da Boa Vista, radicada em Mogi Guaçu. Ativista literária, com vários títulos publicados, estreiou no catálogo da Editora Luzeiro em 2012 com O Silicone. A crítica dos costumes, a observação do comportamento social é uma tradição no cordel. O poeta Manoel D'Almeida Filho estreiou no cordel em 1936 com um poema nessa direção: A Moça Que Nasceu Pintada Com As Unhas De Ponta E As Sobrancelhas Raspadas. O pai do cordel, Leandro Gomes de Barros, tem vários títulos que perfazem a crônica social da cidade do Recife, como Os Coletores da Great Western, A Festa Do Mercado Do Recife ou Bento, O Milagreiro De Beberibe. Fátima recebe essa herança e trabalha seu poema com as orientações da tradição. O Silicone pensa a sociedade e a busca da beleza eterna e da eterna juventude ao abordar a indústria da cirurgia plástica, ampliada nos reclames midiáticos, assentada na crença da mulher fatal cuja ancestralidade está na Sibila de Cumas. Anotando as linhas do poema, Fátima faz um trabalho honesto, cumpre as rimas com certo rigor, sem muitas repetições, mas cai aqui e acolá na quebra do pé de um verso, sem comprometer o todo. Vale observar as cinco estrofes, no meio de 52, rimadas no "ÃO". Como a maioria dos poetas sabe e conhece, a rima nessa terminação propõe velocidade ao poema, todavia deve ser usada com parcimônia para não trair um provável encurtamento vocabular. O uso feito por Fátima é razoável, mesmo porque há ousadia em algumas rimas, por exemplo ao rimar "paparazzo" com "caso" e "prazo", na estrofe 50. A constante repetição da palavra "doutorzão" ao se referir ao profissional que promove a cirurgia plástica é depreciativa e merecia a utilização de sinônimos. A aparição da rima no diminutivo nas estrofes 15, 18, 35 e 45 transformaram-se, como quase sempre transformam-se, em armadilhas que podiam ser evitadas. A estreia de Fátima Filon na Luzeiro é interessante e o cordel exige uma continuidade para a prova final de seu chamado. Resta-nos aguardar os títulos que não conhecemos.
Silvinha França, paraibana de Guarabira, ao que nos parece bebeu na herança cordelística do brejo cuja capital foi sua cidade de origem. Situo Guarabira no brejo para cumprir o que chamamos de Cinturão Cordelístico Brejeiro, no qual estão dispostos os municípios de Areia (onde Francisco das Chagas Batista publicou seu primeiro poema e onde nasceu João de Cristo Rei), Solânea e Bananeira (berços dos Sena), Guarabira (possível terra de Apolônio Alves e centro editorial, vejam seu Pontes, Camilo e o próprio Pedro Batista), Sapé (Melchíades e Azulão), Alagoa Grande (Manoel D'Almeida Filho) e Alagoa Nova (Cícero Vieira, Mocó). Silvinha, portanto carrega a marca da terra. Licenciada em Geografia, palmilha a arqueologia, estuda os petrogrifos da região, protege seus sítios e milita nas lides da Sociedade Paraibana de Arqueologia. A Princesa Encantada Da Lagoa do Caju, seu cordel de estreia, retoma a lenda das assombrações da Lagoa do Caju, na cidade de Araçagi. A lenda fala de uma moça encantada, com voz sedutora, em melodia de lamento. Essa moldura serve à autora como fio condutor para a divulgação da escrita encontrada no Lajedo Grande, sítio arqueológico local. Referindo-me à tessitura da peça poética, ressalto a primeira página do poema, com três estrofes, das quais a primeira e a terceira estão armadas com rima no infinitivo “AR’ e a segunda, a do meio, rimando em “Á”. Embora bem colocadas, tanto as rimas como a métrica, na repetição do som agudo transformam esse primeiro encontro do leitor com o poema em uma espécie de “carreirão”, o que não é bom para o cordel, exigente que o é em matéria de diversificação de rimas. A rima em “AR” e “Á” serve muito à oralidade pois prepara o ouvinte para as terminações. No cordel, na bancada, é alçapão que aprisiona. Isso vale para toda a rima nessa categoria. As setilhas são fechadas na rima o que traduz o domínio da poeta sobre esse ofício: ababccb. Claro que isso não condena o poema, mas pede um pouco mais de trabalho. O poema de Silvinha tem virtudes maiores: notas sobre a origem de vários nomes estranhos ao leitor (são dezesseis notas valiosas para nós), uma boa bibliografia (21 citações sobre arqueologia e repertório legendário), uma apresentação da Sociedade Paraibana de Arqueologia e ficha catalográfica.
Maria do Rosário Lustosa Cruz, cearense do Juazeiro, pedagoga, arte-educadora e poeta, está na senda do cordel desde o ano 2000, como diz sua breve biografia na segunda contracapa do folheto O Remédio De Tonico. Tal título pertence ao Projeto SESC Cordel, Cordel Na Feira, produzido no Crato. Na mesma linha de O Silicone, de Fátima Filon, narra o encontro de seu Tonico, idoso, com a maravilha do fármaco estimulante sexual para comemorar suas bodas de ouro com Dona Toinha. Maria do Rosário cria os personagens e os coloca em situação de confronto por oferecer a um, o masculino, o estimulante, e a outro, o feminino, a passividade. Evocando o machismo e a Lei Maria da Penha, visto que a trama envereda pela agressão física e intervenção da lei, o poema está armado sobre sextilhas. Mesmo com alguns pés em seis versos, ou dúbios na contagem (“mãe de quatorze filhos”, na estrofe 2, ou “vivia admirado”, na estrofe 3), a história flui com rapidez porque assentada nas rimas em tempos verbais. Mas isso não revela um equívoco, tão somente a opção da poeta em aproximar seu relato da oralidade, facilitando a vida do leitor e pensando no ouvinte. A segunda estrofe, com rima no diminutivo, coloca palavras que, embora na terminação “inha”, não armadilham a autora: “vizinha”, “linha”, “Toinha”. A observação gramatical alcança as estrofes de 21 a 24. Essas estrofes compõem a fala da personagem Dona Toinha. É comum no cordel o travessão alternando estrofes se referirem a duas falas entre dois interlocutores. Maria do Rosário embasa-se na norma culta e a cada estrofe, mesmo sendo a fala de uma mesma personagem, a inicia com o travessão. O que está certíssimo e merece o aplauso. Outro elemento interessante é a verossimilhança negada. Explico: algumas peças de ficção, para fugir a qualquer mal-entendido, trazem um seu início o clichê “qualquer semelhança terá sido mera coincidência”. A autora subverte a ordem e o traz na última sextilha do seu poema. O Remédio De Tonico dialoga com outros títulos de crônica social e crítica de costumes. O cordel, como vemos, vai além da narrativa maravilhosa, como no caso dos três poemas abordados acima e do próximo a ser citado.
Ivonete Morais é cearense de Fortaleza. Socióloga, pós-graduada e ativista do cordel, tem títulos ligados a sua atuação acadêmica, como 23 De Abril: Dia Mundial Do Livro e Programa Criança Fora Da Rua Dentro Da Escola. No título que lemos, Ser Criança É... (Brincadeiras De Ontem E De Hoje), Ivonete busca nas memórias o rol de brincadeiras e jogos infantis nos quais as crianças nordestinas viveram seus dias, mas não é só. Usando o bordão “Ser criança é...” a poeta constrói o mundo da criança ideal vivendo no melhor dos mundos. Nas estrofes de 36 a 39 há uma crítica ferrenha ao mundo globalizado que, no discurso do narrador, ou pensador, não traz a felicidade à criança. A crítica ao consumismo denuncia a sociedade oferecendo produtos estranhos (celular, computador, laptop, patinete, videogame, motocross) em detrimento das tradições lúdicas (cantigas de roda, bonecas de pano, pula corda, parlendas, etc). Mas na estrofe 30 encontramos os dois versos: “Ser criança é acreditar/ Que existe Papai Noel”, ora o símbolo máximo do consumismo está representado aí nessa figura. Em outras duas estrofes há referências à religião cristã, na estrofe 2 (Pureza, ingenuidade/ São frutos do bom cristão) e na estrofe 15 (Ser criança é conhecer/ O autor da criação) para as quais cabem perguntas e reflexões: e as crianças que não são cristãs? E as crianças filhas de pais ateus? Até onde a pureza (elemento ideológico) e ingenuidade (elemento natural) são compatíveis dentro do mesmo caldeirão? Essas observações não querem manchar o bom trabalho de Ivonete no escrever do seu cordel, mas trazer a complexidade exigida na apreciação crítica de um folheto que muitos querem “popular” quando apenas bastaria jogar sobre ele, o cordel, o aparato teórico das ciências humanas, da teoria e crítica literária e ou da filosofia. O poema de Ivonete é uma ótima janela para o estudo crítico, o aporte teórico, a análise mais aprofundada. O cordel também é punhal. Fere os incautos e assassina os tolos.
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